O Biodesign é uma abordagem inovadora que busca inspiração na natureza para criar soluções sustentáveis, que respeitam os ciclos naturais. Assim como toda inovação, o Biodesign surge na intersecção entre diferentes saberes, neste caso entre o design e a biologia.
Design é a concepção de um produto (máquina, utensílio, mobiliário, embalagem, publicação etc.).
Biologia é a ciência que estuda a vida e os organismos vivos.
Mas antes de nos aprofundarmos em definições, vamos começar fazendo algumas perguntas e reflexões para que possamos ver o mundo sob a perspectiva de um biodesigner. Neste artigo iremos ainda explorar algumas inovações e exemplos práticos de soluções do Biodesign, incluindo uma experiência "faça você mesmo" ao final!
Observar e refletir
Você já parou para observar a natureza e perceber como os seres vivos interagem e se adaptam às transformações do meio? O que acontece quando o galho de uma árvore quebra, ou quando uma folha seca cai no chão da mata? Como é a estrutura das penas das asas dos pássaros, e por que ela ajuda os pássaros a voarem? Como as algas resistem às forças de ondulações, correntes e marés? Como é construída a estrutura de uma colmeia de abelhas? Como a energia se transforma e se propaga na natureza?
Ciclos da vida. Na natureza, mesmo depois de uma ruptura, seja uma quebra, perda de um membro, ou mesmo morte de um ser vivo, a vida segue e se regenera. O fim de um ciclo é sempre recomeço de outro. Esse é o processo de re-ciclagem total e regenerativa.
Um exemplo fácil de observar em nosso dia a dia, é o das folhas das árvores que caem no outono, e servem de alimento para bactérias, fungos e vermes no solo, que auxiliam o processo de decomposição e transformação deste elemento em nutrientes para o solo e para outras plantas se desenvolverem.
Já quando olhamos para as profundezas do oceano, podemos tomar de exemplo as baleias, que quando morrem e afundam no oceano profundo, tem suas carcaças transformadas em um verdadeiro banquete para Vermes, caramujos, lapas (gastrópodes), bactérias, bivalves como amêijoas e mexilhões que vivem em um ambiente pobre em nutrientes. Uma baleia de 40 toneladas equivale a 2000 anos de matéria orgânica caindo de uma só vez!
Um outro exemplo mais extremo, está no grupo dos anfíbios. O Axalote Mexicano (Ambystoma mexicanum) que é capaz de regenerar uma extremidade amputada, orgãos e se tecidos em questão de semanas - com todos os ossos, músculos e nervos no lugar certo.
Outro ponto importante a se observar é o da eficiência. Pense por um instante, são bilhões de anos de processos evolutivos que levam os organismos vivos a alcançarem a máxima eficiência em termos de energia, resistência, resiliência e flexibilidade.
Podemos ver isso por exemplo na pele do tubarão que está coberta por escamas microscópicas chamadas dentículos dérmicos. Essas estruturas desempenham diferentes funções, como a de proteger o corpo do animal (funcionando como uma espécie de armadura), facilitam a sua locomoção dentro d'água, pois reduzem o arrasto com o fluido, sem comprometer sua flexibilidade, e além disso, ainda possuem propriedades que evitam infecções por patógenos.
E um dos exemplos mais famosos de eficiência na natureza é o favo de mel. O formato hexagonal das células do favo são um exemplo de como a natureza pode otimizar a utilização do espaço. Esse formato permite que as abelhas armazenem mais mel e pólen e, ao mesmo tempo, minimiza a quantidade de cera necessária para construir cada célula.
São observações e reflexões como estas, e outras ainda mais aprofundadas, que aqueles que desejam trabalhar com biodesign precisam se fazer. Biodesigner's são exímios observadores da natureza, que estudam a natureza, seus processos, adaptações, gerando insights de aplicações dos mesmos princípios no desenvolvimento de novos materiais, produtos, tecnologias e até serviços para desenvolver soluções mais sustentáveis.
Soluções inovadoras na prática
Mas como aplicar na prática todos esses ensinamentos da natureza? A prática do biodesign se refere ao design (projetos), que inclui uma ou mais das seguintes estratégias:
1) Natureza como modelo: princípios de biomimética,
2) Natureza como recurso: princípios bio-circulares,
3) Natureza como parceira: princípios de bio-montagem,
4) Natureza como sistema reprogramável: biologia sintética
Listamos aqui alguns exemplos fascinantes, inovadores e práticos, associados a cada um desses princípios, e que demonstram como é possível criar, hoje, um futuro mais sustentável
NATUREZA COMO MODELO: BIOMIMÉTICA
Neste caso, o design "imita" a natureza. É a Biomimética - termo cunhado em 1997 por Janine Benyus em seu livro: "Biomimicry - Innovation Inspired by Nature", para denominar a ciência que estuda os princípios criativos e as estratégias implementadas pela natureza, na busca por respostas para problemas atuais da humanidade. Foi através desse método que muitas das inovações de nosso cotidiano foram criadas, por exemplo o velcro, inspirado nas sementes de uma planta. Por outro lado, a tecnologia de eficiência energética que criou as roupa de natação inspirada na pele de tubarões, agora servem também a indústria de transportes, através de revestimentos inspirados na pele de tubarão que, diminuindo o arrasto, aumentam a eficiência energética de aviões e navios, reduzindo assim as emissões de carbono.
Outras inovações super atuais em termos de biomimética, estão no campo da geração de energia. Turbinas eólicas são umas das soluções mais empregadas para geração de energia limpa - apesar de seus impactos sociais, veja matéria do G1. Porém, a tecnologia também possui diversos desafios relacionados à interação entre a própria estrutura e o fluido em questão, o ar/vento, o que gera uma demanda de manutenção constante. Atualmente estão sendo desenvolvidas pás que imitam as nadadeiras da Baleia Jubarte, que permite que o vento seja desviado pelas pás mais facilmente, aumentando a velocidade de giro, consequentemente gerando mais energia, ao mesmo tempo que diminui a frequência de manutenção.
Outras soluções estão na geração de energia através das ondas. Que nada mais são do que a energia solar propagada através da geração de ventos por diferença de temperatura na atmosfera, que interage com a superfície do mar e gera ondas. A BioWAVE uma tecnologia desenvolvida em parceria entre uma empresa Alemã e Australiana, criou uma estrutura que imita os movimentos das algas marinhas sob a influencia das ondas, para transformar energia mecânica em elétrica. Agora essa energia também pode ser propagada para sua casa!
NATUREZA COMO RECURSO: PRINCÍPIOS BIO-CIRCULARES
Nesta estratégia, o material utilizado é natural e portanto pode retornar facilmente ao ciclo de regeneração. O design aqui é pensado considerando todo o ciclo de vida útil do produto ou material, desde sua concepção até seu "descarte", permitindo que o mesmo volte ao sistema sob a forma de nutriente através de processos como a compostagem.
Alguns exemplos são embalagens com bio-plásticos feitos de algas, como a NOTPLA que produz "bolas de água" comestível, já aqui no Brasil a mandioca (macaxeira ou aipim dependendo de onde estiver) é uma das estrelas, já existem bioplásticos comestíveis feitos de fécula de mandioca, que ajudam a proteger e conservar frutas e legumes, e embalagens feitas de mandioca, que são compostáveis.
E pra mim, o mais incrível de todos, uma planta marginalizada e criminalizada que entrega diversas soluções para um planeta mais saudável e sustentável: o cânhamo! Planta que serve de matéria prima para diversos produtos, desde a indústria têxtil e mundo fashion, suplementos, materiais de construção civil, até a produção de bio-combustível! Isso tudo com um crescimento extremamente acelerado, exigindo pouquíssima água e capturando enormes quantidades de carbono, entre 8 e 16 toneladas de CO2 por hectare, mais que o dobro da capacidade de absorção das florestas. O fator de absorção do cânhamo é tão alto que torna seu cultivo e grande parte dos seus subprodutos, carbono positivo, ou seja, captura mais carbono do que emite em seu processo produtivo (vale um blog post só sobre esta solução)
Para saber mais sobre as histórias do cultivo do cânhamo nos EUA assista a esse dois filmes produzidos pela marca de roupas esportivas PATAGONIA:
Misunderstood ("Incompreendida"):
Bring Hemp Home (Tragam cânhamo de volta pra casa"):
NATUREZA COMO PARCEIRA: PRINCÍPIO DE BIO-MONTAGEM
Aqui a natureza está também inserida no processo de criação, ou melhor de "crescimento" do produto. Temos como exemplos a produção de pranchas de surf com espuma interna feita de micélio (filme), couro feito a partir de bactéria, e até jaquetas para o mundo fashion. E essa tecnologia natural não serve apenas na produção de pequenos objetos, ela já está sendo usada na arquitetura para construção civil, esse é o caso da coluna projetada por algoritmos e impressa em 3D, o Protomycokion. O resultado é um material de construção resiliente, estrutural, à prova d'água, isolante, altamente háptico, e que aproxima a era da personalização em massa, podendo adaptar a tecnologia a diversos contextos.
NATUREZA COMO SISTEMA REPROGRAMÁVEL: BIOLOGIA SINTÉTICA
A biologia sintética consiste no design e construção de organismos, vias ou dispositivos artificiais, e também no redesenho/ manipulação dos sistemas naturais existentes. Já é possível programar uma bactéria para produzir determinada cor e tingir nossos tecidos com corante natural, ou mesmo produzir fios de seda em larga escala a partir da fermentação de levedura, material já usada pela gigante Adidas. Está é uma área do biodesign extremamente delicada, que tem trazido a tona discussões importantes sobre as implicações éticas da biologia sintética e do biodesign.
Conclusão
Como pudemos "observar", o Biodesign emerge da própria vida, ele incorpora princípios inerentes aos sistemas vivos no processo de design como solução para uma transição para um futuro mais sustentável e regenerativo.
Então fica a pergunta... Como seria nossa realidade se tudo o que criamos fosse pensado através da perspectiva do biodesign? Na transição para um mundo mais sustentável, o mais importante não é ter a resposta imediata, mas sim seguir questionando a realidade que vivemos, observando e refletindo com a maior designer de todos os tempos, a natureza, que está sempre em constante adaptação às transformações inevitáveis dos ciclos naturais da vida. Rumo a uma nova relação com o mundo natural
Por que sustentabilidade é respeitar ciclos.
Faça você mesmo (DIY)!
E aqui está um pequeno projeto "faça você mesmo", para experimentar em casa o biodesign:
Água comestível!
Referências:
BENYUS, J. Biomimicry: Innovation Inspired by Nature. New York: Morrow, 1997. BIOMIMICRY INSTITUTE. What Is Biomimicry? Disponível em: <https://biomimicry.org/what-is-biomimicry/ >. Acesso em: 15 agosto 2023.
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ALISSON, T. O Design das baleias jubarte está ajudando a resolver um grande problema das turbinas eólicas. Disponível em: <https://meioinfo.eco.br/design-baleia-jubarte-turbinas-eolicas >. Acesso em: 15 agosto 2023.
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Revestimentos inspirados na pele do tubarão aumentam a eficiência energética em meios de transporte. Disponível em: <https://www.ecycle.com.br/revestimentos-inspirados-na-pele-do-tubarao-aumentam-a-eficiencia-energetica-e-do-combustivel-de-meios-de-transporte/ >. Acesso em: 15 agosto 2023.
Posted by Juliana Poncioni
Fundadora e Diretora da Nas Marés, velejadora, Engenheira Ambiental, eterna Aprendiz, multi-esportista aventureira, se dedica a viver e a educar para sustentabilidade, trazendo sua energia, criatividade e paixão a tudo o que faz, despertando curiosidade e entusiasmo àqueles ao seu redor.
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